sábado, 18 de setembro de 2010

Arte moldada e viva

Localizado em Caruaru, no Agreste Pernambucano, Alto do Moura guarda o que há de mais genuíno na arte figurativa brasileira


Conhecido como a Princesinha do Agreste, Caruaru, município pernambucano localizado a cerca de 140 km de Recife, é famoso pelo mercado têxtil em crescente expansão e pelos ritmos variantes do forró que embalam as ruas da região durante todas as suas tradicionais festas populares. Porém, não é só dos balanços nordestinos e do ramo confeccionista que vive a Capital do Agreste. Quem visita a cidade não pode deixar de conhecer o Alto do Moura, uma pequena comunidade de artistas distante 7 km do centro da cidade onde vivem e trabalham mais de mil artesãos, em sua grande maioria filhos e netos de ceramistas tradicionais da região.

Uma das personalidades mais ilustres e emblemáticas da localidade é o Mestre Vitalino, um dos precursores no Brasil da chamada arte figurativa. Sua casa, atualmente transformada em museu, é uma das primeiras a despontar na rua de terra batida rodeada de pequenos casabres, todos tão humildes quanto a sua antiga morada. Hoje habitada pelos filhos e netos que deram continuidade à sua obra, o espaço é, a despeito da exacerbada simplicidade, objeto de visitação de gente do mundo inteiro, encantando os turistas pela riqueza de detalhes e cuidado com que a história da vida no sertão pode ser contada através do barro.

Se estivesse vivo, Vitalino já teria seus quase 101 anos. Porém, ao contrário de suas peças de barro já escurecidas pelo tempo, sua obra não envelheceu, servindo de referência estilística para a maioria dos bonequeiros locais.

É o caso, por exemplo, do Mestre Luiz Antônio da Silva, contemporâneo e discípulo direto do Mestre Vitalino. Com 75 anos de idade, 52 dedicados à arte, o artesão já teve seus trabalhos expostos em diversas partes do Brasil e do mundo. Há alguns anos, foi convidado a passar uma temporada no Japão. Foram 46 dias, nos quais produzou mais de 200 peças a partir de 100 kg de barro. Já em 1986, importou mais de 600 fusquinhas para a Alemanha. "As pessoas dão valor, especialmente as que conhecem o mundo e sabem que o que se faz aqui é diferente de tudo", afirma sem esconder o orgulho.

Além das usuais temáticas sertanejas presentes no cardápio iconográfico do Alto do Moura, Mestre Luiz Antônio traz um diferencial: é fácil perceber em seu acervo a presença constante da interação do homem com a máquina. Desse modo, pessoas munidas de máquinas fotográficas e filmadoras, eletricistas modificando instalações elétricas em postes e miniaturas de automóveis são recorrentes em sua coleção de bonecos.

Cenas do cotidiano


Se para nós a mistura soa inusitada, para Luiz Antônio é tudo um reflexo de suas experiências de vida e do processo histórico pelo qual passou o Alto do Moura. "Modelo no barro as coisas que vivo e as mudanças que experimento. Por exemplo, meu primeiro contato com uma filmadora de vídeo foi em uma ocasião há quase 30 anos em que uma equipe de TV esteve aqui na cidade. O equipamento acabou ficando na minha casa, e por curiosidade eu resolvi reproduzir as formas e incluir nas minhas criações", conta.

Representando sua vida no barro, como ele mesmo gosta de dizer, Luiz Antônio também é famoso pelas réplicas de pároco, que remetem a um de seus filhos que é padre, e dos carros de fórmula um, lembrança da data de morte de Ayrton Sena. "Sempre transportei para o terreno das artes as cenas do meu cotidiano, da minha família e da minha comunidade", explica.   

Sem medo de romper padrões

Outra cena bastante recorrente na obra do mestre Luiz Antônio são os partos, tanto humanos quanto veterinários. "Minha mãe era parteira, daí a ligação tão forte com o tema. Dos meus 10 filhos, apenas um não nasceu por suas mãos. Porém, quando eu iniciei a produção de algumas peças com essas características, todos ficavam horrorizados, falavam que era uma coisa feia, que não devia ser retratada", explica. Apesar disso, o mestre nunca teve medo de modelar o que fazia sentido para si, independente da opinião das outras pessoas. "Tem coisa mais bonita e mais humana do que nascer?", brinca.

Herança em forma de arte       

Atualmente, Luiz Antônio e sua esposa Odete possuem 10 filhos e 22 netos, a maioria empenhada em aprender e repassar para as próximas gerações a arte do barro e da criação artística. "Dos meus 10 rebentos, apenas dois não vivem mais no Alto do Moura. O restante, juntamente com sua prole, mora aqui e tira sustento da arte, da produção feita a partir do barro", conta, orgulhoso.

Porém, apesar da união artística familiar, cada um possui o seu espaço, o que segundo seu Luiz resguarda a identidade de cada artista. "Só vendo o que eu faço, nem os meus filhos vendem aqui na minha loja. Cada um tem o seu próprio empreendimento, sua rotina de trabalho e sua maneira de lidar com o barro", explica.

Aliás, no quesito produção, o Mestre Luiz Antônio é um crítico ferrenho do chamado artesanato de forma, que utiliza moldes para manter uma certa padronização nas peças. "Detesto quem trabalha com forma, pois descaracteriza completamente a arte do barro, pautada nas características individuais e únicas de cada peça e no toque que o artista dá para suas criações", afirma.

Resgate e conservação

Pensando no futuro, o mestre Luiz Antônio já prepara, no andar de cima de sua loja, a inauguração de um museu com suas obras, que contará com o apoio da prefeitura de Caruaru. "Quando o Vitalino morreu, deixou pouquíssimas peças. Da mesma forma o Zé Caboclo, que o Jackson do Rio, dono da maioria do acervo restante, acabou devolvendo para família em respeito à memória de sua obra. Não quero que o mesmo aconteça comigo, por isso, pretendo inagurar o museu enquanto eu ainda estiver vivo, para que eu possa deixá-lo com a minha cara e rico o suficiente para que possa de fato resgatar tudo aquilo que eu produzi de melhor", explica o artesão.

Recentemente, para alegria dos amantes e apreciadores da arte, o Alto do Moura foi considerado pela Unesco como o Maior Centro de Artes Figurativas da América Latina, o que garante os investimentos e cuidados necessários para a manutenção desta arte viva que pode ser vistas pelas ruas da comunidade. E você visitante, quando visitar Caruaru, não deixe de conhecer o lugar, que proporciona uma verdadeira viagem aos confins da memória e da vida no sertão. Obrigatório.    

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